A caixa preta da dívida
Para investigar natureza do endividamento público brasileiro, movimento da sociedade civil cria auditoria cidadã
Ana Cláudia Peres
Era uma vez o sétimo país mais rico do mundo, que ocupava a nada honrosa 85ª posição no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), medido anualmente pela Organização das Nações Unidas com base em indicadores de renda, saúde e educação. Ambos os dados referem-se ao Brasil. A explicação para o paradoxo tem raízes na História. Mas, para a coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, a auditora fiscal Maria Lúcia Fattorelli, a grande vilã das mazelas sociais do país hoje responde pelo nome de dívida pública.
A dívida consome cerca de metade dos gastos federais a cada ano. Em 2012, absorveu 43,98% dos recursos federais enquanto a Saúde recebeu apenas 4,17%; a Educação, 3,34%; Transportes, 0,7%; Segurança, 0,39%; e Habitação, somente 0,01%. De acordo com levantamento feito pela Auditoria Cidadã da Dívida, movimento que há 14 anos vem mobilizando a sociedade para as questões relacionadas ao endividamento público brasileiro, com os R$ 753 bilhões utilizados em 2012 para o pagamento da dívida, seria possível construir 974 mil Unidades Básicas de Saúde (UBSs) ou 188 mil Unidades de Pronto Atendimento (UPA) ou 802 mil escolas (com seis salas de aula cada) ou 4 mil hospitais públicos ou ainda 21 milhões de casas populares.
Os números de 2013 não são muito diferentes. No ano passado, a dívida pública consumiu cerca de R$ 718 bilhões, o que corresponde a R$ 2 bilhões por dia. “Não existe explicação técnica plausível para o Brasil emitir continuamente novas dívidas, apenas para pagar amortização e juros de dívida, sem que ninguém saiba qual a contrapartida real para essas dívidas”, diz Maria Lúcia, de forma categórica, ressaltando que é preciso descobrir como os valores da dívida externa saltaram de US$ 5 bilhões, em 1970, para mais de US$ 441 bilhões, em números atuais. “Já a dívida interna, que era mínima naquela época, praticamente desprezível, hoje chega a R$ 2,8 trilhões”, completa. “Ou seja, a dívida brasileira é uma dívida financeira, feita em função dela mesma, que se autorreproduz e se autoalimenta”.
A fim de investigar a verdadeira natureza da dívida pública brasileira, é que surgiu o movimento denominado Auditoria Cidadã da Dívida, que hoje conta com nove núcleos espalhados pelo país. “A nossa Constituição [em seu artigo 26 do Ato das Disposições Transitórias (ADCT)] prevê a realização de uma auditoria, mas o máximo que se fez a esse respeito foi criar uma comissão formada em 1989, que chegou a emitir dois relatórios, e depois sofreu um boicote e nada mais avançou”, relata Maria Lúcia.
Plebiscito diz ‘não’
No começo dos anos 2000, um plebiscito pôs na berlinda a dívida pública brasileira ao lançar para a população a seguinte pergunta: “Você concorda em continuar pagando a dívida sem realizar a auditoria prevista na Constituição?” Realizado em 3.444 cidades do país e com 6 milhões de votos computados, a resposta foi um estrondoso “não”. De posse do resultado, seguiram-se um sem-número de manifestações, atos simbólicos e reuniões com os representantes do Executivo.
Mas, sem um retorno efetivo do poder público, os cerca de 80 representantes de entidades envolvidas no processo decidiram criar um movimento que propõe realizar, de maneira cidadã, uma auditoria da dívida pública brasileira, com o objetivo de investigar a natureza da dívida, os montantes recebidos e pagos, a destinação dos recursos e os beneficiários dos pagamentos de juros, amortizações, comissões e demais gastos. Para tanto, desde 2001 vêm democratizando informações e chamando a atenção da sociedade para a realização da auditoria. “A demanda por uma auditoria existe exatamente porque a gente quer saber que dívida é essa”, resume Paulo Lindesay, servidor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e um dos fundadores do Núcleo da Auditoria Cidadã da Dívida no Rio de Janeiro.
“A alma do nosso trabalho são os estudos”, afirmou Maria Lúcia, às vésperas de viajar para a inauguração de mais um Núcleo da Auditoria Cidadã da Dívida, desta vez em Salvador, Bahia. “Antes de publicar alguma coisa, a gente checa tudo. Só trabalhamos com dados e documentos oficiais, e procuramos escrever numa linguagem acessível a todos”. Todo o material produzido, bem como relatórios e outros estudos, são disponibilizados na página oficial da Auditoria Cidadã da Dívida, na internet (http://www.auditoriacidada.org.br/), que apresenta ainda um “dividômetro” atualizado frequentemente com todo o estoque das dívidas externa e interna.
“Essa dívida pública é ilegal, é imoral e só engorda” e “Vamos passar a limpo essa conta” são alguns dos motes das campanhas. Vale também marchinha de carnaval, que para 2014 vem com o refrão: Audita, audita, audita essa dívida maldita... Para Paulo Lindesay, o que importa é aproximar o debate do cidadão comum, desmistificando todas as questões mais áridas que rondam o assunto. “O problema não é a dívida. Uma dívida, muitas vezes, é necessária. Mas toda dívida tem que ter uma contrapartida. E essa que está aí só interessa ao sistema financeiro internacional”, aponta.
CPI da dívida
Uma das conquistas da Auditoria Cidadã da Dívida, pelo menos do ponto de vista simbólico, foi garantir a realização de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, entre 2009 e 2010, que ficou conhecida como a CPI da Dívida Externa. Funcionando de forma precária, com uma equipe de trabalho de apenas cinco membros — Maria Lúcia era um deles, ao lado de um auditor da Caixa Econômica Federal, dois agentes administrativos do Ministério Público e uma funcionária da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) —, a equipe virou pelo avesso tudo o que lhe apareceu pela frente.
Foi assim que conseguiu ter acesso a documentos, contratos e acordos da época da ditadura militar e que apontam para dívidas do setor privado assumidas como dívidas públicas e outros escândalos das décadas seguintes. A leitura de mais de 40 mil páginas de documentos acabou resultando em uma análise técnica elaborada pela equipe que subsidiou os dois relatórios finais da CPI: o relatório oficial, do deputado Pedro Novais (PMDB-MA), e o relatório alternativo produzido pelo deputado Ivan Valente (PSOL-SP), ambos encaminhados ao Ministério Público, contendo denúncias. “Apesar dos entraves e do boicote que sofremos, acho que a CPI foi um avanço”, avalia Maria Lúcia. “O resultado não pode ser medido só nos números da dívida que a gente consegue anular. Esse resultado de conscientização é difícil de medir mas está acontecendo. E é o que eu acredito que vai possibilitar uma efetiva mudança nesse sistema”.
R$ 1 trilhão para 2014
Maria Lúcia Fattorelli refere-se ao sistema da dívida, como denomina a Auditoria Cidadã, um esquema que sugere que a população paga a conta da dívida pública por meio de impostos, mas cujo grande beneficiado é o sistema financeiro. Para explicá-lo, ela lança mão da previsão orçamentária para 2014, enviada pelo Governo Federal ao Congresso Nacional, que estima R$ 1,002 trilhão para o pagamento de juros e amortizações da dívida, sacrificando todas as demais rubricas, repetindo o que aconteceu nos últimos anos.
“O sistema da dívida age de duas formas”, demonstra Maria Lúcia. “Primeiro, o dinheiro gasto em juros poderia ser usado para financiar os serviços públicos, mas em vez disso o governo retira os recursos dos investimentos sociais básicos como saúde, educação, transporte, segurança, assistência que garantiriam a dignidade de vida e a nossa própria emancipação”, diz. Por outro lado, segundo Maria Lúcia, a falta de recursos vem sendo usada como argumento para justificar a privatização de portos, aeroportos, estradas, ferrovias, energia, comunicações e até mesmo o petróleo. “Estamos vendendo nosso patrimônio público e entregando áreas estratégicas que representam a estrutura do Estado, comprometendo a segurança e a soberania nacional”, aponta. ”Isso é transferência brutal de renda pública e riqueza para o setor financeiro. É disso que se trata”.
A lição do Equador
Vem do Equador o melhor exemplo de como enfrentar a questão da dívida. Quando eleito, o presidente Rafael Correa montou a Comissão de Auditoria Integral da Dívida Pública, que funcionou no país entre 2007 e 2008, e comprovou que boa parte da dívida equatoriana era ilegal, conseguindo o feito de reduzir em 70% o seu valor. Hoje, os investimentos sociais no pequeno país da América do Sul superam em quase três vezes os gastos com a dívida pública.
Maria Lúcia, que foi nomeada pelo Governo do Equador para integrar a Comissão daquele país, está convencida de que, no caso de uma auditoria no Brasil, o resultado seria semelhante. “Temos documentos suficientes para comprovar que existem fraudes e ilegalidades no caso da dívida brasileira, como a emissão de dívida para pagar juros”, reforça. Isso explicaria, segundo a Auditoria Cidadã, a diferença entre os números trabalhados pelo movimento e os apresentados pelo governo. De acordo com ela, quando o governo calcula o pagamento de juros como parte do Orçamento, não considera os juros que estão “embutidos” no refinanciamento da dívida.
A ex-auditora da Receita Federal reforça que menos dinheiro para pagar juros significa mais dinheiro disponível para investimentos sociais. E que o primeiro passo para garantir isso é a realização de uma auditoria com participação popular. “A tarefa do nosso movimento é formar cidadania para que isso ocorra”, diz, acrescentando que há uma série de ações para popularizar o debate previstas para 2014, entre elas a criação de um Núcleo de Formação e a elaboração de um questionário para os presidenciáveis cuja principal pergunta será: como pretende enfrentar o sistema da dívida? O eleitor brasileiro agradece uma boa resposta.
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